domingo, 27 de novembro de 2011

Domingo


Ainda dizem por aí que a morte é a única certeza da vida, mas ela era uma pessoa de sorte - tinha duas. A morte, do alto de sua respeitosa idade, era mais certa que nunca; por outro lado, segunda coisa da qual ela não tinha a menor dúvida era o domingo. Sua existência era contada por intervalos de tempo que compreendiam 7 dias exatos. Começava num domingo e de novo a cada outro. Por isso, além da morte, sua certeza era a alegria que prometia renascer em seu coração na próxima semana.
Domingo era o dia de visitas. Foi criado com a intenção de reservar momentos para que as famílias voltassem a vê-los, jogar conversa fora e saber se tudo estava indo bem por lá. Às vezes, até faziam frango no almoço. Haveria mais que 20 e poucas pessoas convivendo com a solidão. Mas domingo raramente era um dia em que o abrigo se tornava muito mais movimentado. Vez ou outra, aparecia alguém disposto a fazer uma boa ação, trocava duas, três palavras com quem estivesse sentado na varanda, circulava pelo lugar, consultava o relógio, contava 15 minutos passados e via que já era tarde. Em alguns desses domingos, ela tinha a sorte de se sentar sempre no mesmo banquinho perto das flores, caminho daquele que entrasse no varandão. Faziam as perguntas de sempre – “há quanto tempo a senhora está aqui?”, “gosta de morar no abrigo?” – e, por fim, a que ela mais gostava de responder. “E a sua família, vó?”
Tinha, sim. Era o filho único (moço bonito, ela dizia), religioso que se tornara pastor, querido pelos fiéis, muito mais que querido pela mãe. No dia em que ela pisou ali pela primeira vez, ele a apresentou à tal casa de repouso com tamanha distinção na voz que a encheu de orgulho por estar em um ambiente assim tão chique. Explicou que domingo era o dia de visitas e ele voltaria pra vê-la. “Por isso eu estou sentada aqui, moço”. Porque seu filho prometeu visitá-la há mais de 2 anos e era domingo.
Passava a manhã ali, reclusa em sua ponta de banco. A tarde chegava, fazia companhia a seu silêncio e ia embora. Há quem pense que sua paciência desfaleceria cedo ou tarde junto com a cor do céu, mas a verdade é que os tantos domingos que cabiam em 2 anos não foram suficientes pra tirar sequer o sorriso de seus lábios. Ela não contava o tempo em anos – ela contava o tempo de 7 em 7 dias. Domingo era dia de visitas, e ela ficava cheia de vida. De que importa se demorasse 6 dias até que o sétimo fosse a oportunidade de seu filho vir lhe ver? Não, ela não tinha somente duas certezas. Ela tinha três. Ele viria.
Perto do Natal daquele ano, algumas pessoas que a notaram sentada perto das flores e ouviram dela a história do filho quiseram por sorte esbarrar com ele por aí. De fato, uma delas chegou a encontrá-lo na rua de sua igreja, talvez indo pra casa depois de uma bela pregação. Apesar de todos os protestos despejados, as acusações e a dura repreensão que sofreu, ele respondeu fazendo uma simples pergunta – “E o problema é seu?”. Não era. Não é problema de ninguém. Não é problema nosso, nem da pessoa que tentou resolvê-lo confrontando o tão aguardado filho na rua, o qual, por 2 anos, também não teve problema nenhum. O problema está no sentido que damos às coisas. É usar o nome casa de repouso como bom eufemismo nas conversas, quando a maioria dos que lá estão não repousam, mas foram sim descartados. É falar do tal amor ao próximo, amor à vida, amor próprio, amor platônico e tantas outras variações, quando na realidade o amor, pura e simplesmente tal como ele é, foi esquecido até com os que estão bem perto.
No domingo daquela semana, souberam que o filho dela foi vê-la. A pessoa que o encontrara deixou claro que seus fiéis tomariam conhecimento do problema que, da mesma forma, não era deles, antes de virar as costas e não perder mais do seu tempo discutindo com quem lhe dava pouca ou nenhuma atenção. Ele foi recebido como se, ao invés de 2 anos, tivessem se passado 7 dias desde quando a deixou sentada no baquinho da varanda.
A idade avançada não lhe permitiu que chegasse ao Natal daquele ano. E depois de ter constatado a segunda e a terceira certeza de sua vida, a primeira se fez valer poucos dias depois que recebeu seu presente.

Um comentário:

  1. E é diante desse texto que a gente toma um soco na boca do estômago quando lembra que gasta todo o tempo escrevendo sobre amores (amor? mesmo?) que julgo existirem só de dentro pra fora.

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